SEPEI Data de Publicação: 03 set 2025 18:07 Data de Atualização: 03 set 2025 18:26
A mesa-redonda “As raízes que nos formam: protagonismo negro e indígena na construção de Santa Catarina”, realizada durante o Sepei 2025 do IFSC, reuniu os professores Carlos Eduardo Bartel e José Bento Rosa da Silva para refletir sobre a centralidade histórica, cultural e social das populações negras e indígenas na formação de Santa Catarina. A mediação ficou a cargo de Ana Paula Pruner de Siqueira, professora de História do IFSC desde 2011 e doutoranda na UFSC, pesquisadora das áreas de escravidão, pós-emancipação, relações de trabalho escravistas e questões fundiárias.
Na abertura, a professora destacou a importância de reposicionar o olhar da historiografia catarinense, por muito tempo marcada pela invisibilização desses povos, para reconhecer seus papéis essenciais na construção do estado. A proposta da mesa foi deslocar o foco do mito do “vale europeu” para as experiências e formas de resistência de populações historicamente marginalizadas.
O professor Carlos Eduardo Bartel, pós-doutor em História pela Universidade Federal da Grande Dourados, doutor pela UFRGS, mestre e graduado pela Unisinos e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto Federal Catarinense – Câmpus Ibirama, apresentou a palestra “O índio que mora em nossa cabeça”. Ele abordou a permanência de estereótipos forjados no século 19 e reproduzidos ao longo do tempo, como a visão do indígena como “preguiçoso” ou “selvagem”. A partir de suas pesquisas sobre migração e colonização no Vale do Itajaí, destacou como esses preconceitos ainda ecoam hoje, seja na ideia de que há “muita terra para pouco índio”, seja na noção equivocada de que indígenas que utilizam tecnologias modernas não seriam mais indígenas.
Bartel reconstruiu o processo de invasão das terras indígenas, o projeto estatal de branqueamento da população e o ciclo de violência dos bugreiros após a fundação de Blumenau, em 1850, que resultou em genocídios e expulsões. Ao tratar do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910, ressaltou a ambivalência da instituição: por um lado, apresentava uma proposta humanitária de “proteger” os indígenas; por outro, legitimava o avanço sobre seus territórios sob o discurso de “pacificação”. No caso dos Xokleng-Laklãnõ, relatou o processo de “encaixotamento” territorial que culminou na atual Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em José Boiteux (SC), onde o povo segue em luta pela preservação de suas terras. Em sua fala, também criticou a construção turística e ideológica do chamado “Vale Europeu”, que reforça a identidade branca e invisibiliza a presença indígena e negra na região. Bartel encerrou com um chamado inclusivo: “Aqui em Santa Catarina há lugar para todos, todas e todes.”
Em seguida, o professor José Bento Rosa da Silva, graduado em História pela Fundação do Pólo Regional do Vale do Itajaí (1985), mestre pela PUC-SP (1994), doutor pela UFPE (2001) e professor associado do Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, com estágio pós-doutoral na Université Jean Jaurès – Toulouse, apresentou a conferência “Tradição oral, memória e história: invisibilidade negra em Santa Catarina”. Especialista em História da África, diáspora, escravidão, abolição e memória urbana, o pesquisador destacou como, até 1988, prevaleceu o discurso de que a escravidão em Santa Catarina teria sido irrelevante, quase inexistente. A criação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da UFSC, coordenado por Ilka Boaventura Leite, naquele ano, foi apontada como ponto de inflexão para o reconhecimento da população negra na história do estado.
José Bento mostrou como símbolos públicos, como o Hino de Santa Catarina, seguem sendo disputados, muitas vezes em tentativas de apagar referências à escravidão e à abolição. Trouxe também o exemplo do “Morro da África”, em Jaraguá do Sul, território formado por descendentes de ex-escravizados trazidos para limpar o terreno antes da chegada dos colonizadores, como memória local que merece resgate e valorização. Defendeu ainda a história oral como ferramenta indispensável para trazer à tona trajetórias silenciadas, desde que cruzada com registros documentais e arquivos, inclusive os hoje digitalizados pela Funai. Um exemplo citado foi sua investigação sobre o sobrenome Kazumba, que partiu de uma inquietação cotidiana e se expandiu até a rastreabilidade de vínculos entre o Recôncavo Baiano e diferentes diásporas africanas.
O debate com o público reforçou a necessidade de fortalecer os Neabe Neabis, multiplicando encontros regionais e nacionais, de inserir as relações étnico-raciais no currículo obrigatório da Rede Federal e de ampliar políticas de acesso e permanência. Foi ressaltado que estudantes negros, indígenas, trabalhadores e mulheres estão entre os que mais evadem, e que a convivência cotidiana com a diversidade é uma experiência formativa essencial.
Entre as referências e materiais citados ao longo da mesa, estiveram os documentários “Menino 23” e “Que Horas Ela Volta?”, além de obras recentes sobre a história indígena e negra em Santa Catarina, incluindo o livro de Bartel lançado em 2025: “História indígena em Santa Catarina: historiografia Xokleng-Laklãnõ”.
A mesa reafirmou a importância de resgatar e valorizar a pluralidade de trajetórias que compõem Santa Catarina, reconhecendo que a formação do estado vai muito além da herança europeia e só pode ser compreendida em sua riqueza quando inclui o protagonismo das populações negras e indígenas.
O debate foi transmitido ao vivo e está disponível no canal do IFSC no Youtube. Confira abaixo: